sábado, 10 de janeiro de 2015

A reforma administrativa em Angola

Caiden, citado por Rocha, aponta dois objectivos para a reforma administrativa. O primeiro consiste em melhorar as práticas inadequadas em ordem a melhorar os processos existentes; o segundo implica a substituição do modelo de gestão pública (Rocha, 2001a). A par destes objectivos, o autor acrescenta que a problemática da reforma comporta actualmente duas estratégias: privatização das actividades não essenciais que possam ser prestadas pelo mercado e adopção de instrumentos de gestão destinados a aumentar a eficiência do sistema administrativo[1].
Podemos designar por modernização administrativa os movimentos de mudança na Administração Pública que são orientados para a qualidade, inovação, informação e formação. A modernização é o resultado da reforma. Segundo Kovács (1991), implica mudança nas organizações, de forma a torná-las mais flexíveis, bem como uma nova política de recursos humanos, a qual se caracteriza pelo empenhamento e participação dos trabalhadores da função pública (Rocha, 2001b). As medidas de reforma administrativa são implementadas para todas as administrações de maneira semelhante e os países que apostam nestas medidas pautam-se sempre pela eficiência e eficácia. Estas medidas, refere Dray, passam pela melhoria dos métodos de trabalho, melhoria das condições de trabalho, melhoria no atendimento, melhoria na imagem do serviço, reduzir custos e prazos. Estas medidas acabam por ser actividades essenciais, complementares, interdependentes e indispensáveis para a mudança e para a qualidade administrativa (Dray, 1995)[2].
No âmbito da reforma e modernização administrativa, Corte-Real acrescenta que parece inquestionável que a Administração Pública tem de ser capaz de dar resposta às questões respeitantes à garantia de igualdade dos cidadãos perante a lei; à prestação de serviços de interesse geral, essenciais à comunidade e ao seu equilíbrio social; ao apoio à actividade técnico-normativa do Governo; à condução ou dinamização de projectos estratégicos de desenvolvimento em domínios não lucrativos; e finalmente, ao apoio ao Governo na avaliação e controle das políticas públicas. Leva-nos a entender que a reforma administrativa tem de se reflectir muito na aproximação entre a Administração e o cidadão, apostar na boa gestão pública, na privatização dos serviços públicos e nas novas tecnologias da informação (Corte-Real, 1995), a que Gore se refere igualmente: “ o uso de meios informáticos electrónicos/uma Administração electrónica humanizada” (Gore, 1994).
Aproximar a Administração do cidadão é um objectivo interessante que só resulta quando adequadas medidas políticas tiverem em primeiro lugar melhorado o serviço público em todas as vertentes. Como refere Rocha (2001a), as várias medidas que têm sido tentadas de forma a melhorar o relacionamento entre a Administração e os cidadãos passam pela dinamização da informação, incluindo o marketing público; publicidade institucional, a qual tem por objectivo “vender” os produtos da administração; relações públicas, que estão incumbidas de acolher os cidadãos, encaminhá-los dentro dos serviços e analisar sugestões e reclamações; aconselhamento do cidadão, serviço cuja função consiste na informação, ajuda e protecção dos cidadãos, entre outras medidas já mencionadas anteriormente. Em Angola, muitas destas medidas estão expressas nas Normas do Procedimento e da Actividade Administrativa e na da Deontologia do serviço público. Só assim é que as outras medidas de reforma poderão ter campo de acção.
Segundo Marques as grandes vantagens da reforma, destacam-se o impulso à competitividade, a captação de investimento e o respeito pelos direitos individuais dos promotores (...) e uma forma de libertar a Administração de tarefas inúteis, se for o caso. E é, sobretudo, um factor preventivo dos esquemas paralelos de obter decisões públicas. A eternização dos processos, fazendo-os percorrer, com grande opacidade no caminho e no rítmo, várias entidades administrativas, constitui indubitavelmente um incentivo a formas menos legais de obter uma solução (Marques, 2009).
Gore afirma que a gestão dos serviços públicos tem que assuimir uma clara percepção da missão a cumprir, recorrer mais a incentivos e menos à imposição de regulamentos, adoptar a ideia de que trabalha bem quem consegue obter bons resultados (e não quem se limita a dar estrito cumprimento a regras de procedimento), medir os resultados em função do grau de satisfação do cliente e reflectir devidamente as prioridades orçamentais (Gore, 1994)[3]. Esta perspectiva enquadra-se no movimento de reforma da Administração pública norte-americana que ficou conhecido pela designação de New Performance Review e representa um compromisso entre o chamado New Public Management e o New Public Service.
Gore apresenta-nos quatro princípios fundamentais de boa gestão da Administração Pública: 1. A boa gestão elimina os entraves burocráticos, substituindo sistemas em que as pessoas são responsáveis pelo cumprimento de regras com base na sua opinião e vontade; 2. A boa gestão aposta na satisfação do cliente e, por isso e para isso, cria e aplica mecanismos de conhecimento permanente e rigoroso da sua opinião e vontade; 3. A eficácia só pode ser obtida eliminando a centralização e concentração de poderes, permitindo que as pessoas que estão directamente em contacto com os problemas tenham cada vez mais iniciativas e capacidade de decisão; 4. A boa gestão exige permanentemente reinvenção de métodos, para poupar recursos e melhorar o serviço prestado, recorrendo para isso à reengenharia de sistemas e programas e à avaliação rigorosa dos respectivos resultados (Gore, 1994)[4].
A reforma e modernização administrativa no contexto angolano levantam-nos várias questões: “quando, onde e como reformar, e sobretudo quais os sectores prioritários”, pese embora o país já tenha contemplado algumas mudanças administrativas desde a antiga divisão administrativa até aos nossos dias. A corrupção, a injustiça, a negligência e o excesso da burocracia são aspectos que nalguns sectores administrativos ainda se fazem sentir em Angola. As queixas formuladas e as pesquisas de campo que fizemos apontam que quem quiser montar um negócio tem que proceder na base do paga a este, paga àquele. Outro dos problemas é a morosidade da burocracia e da justiça. A saúde e a educação são sectores fundamentais para ter cidadãos de “mente sã em corpo são”. Daí que são precisas muitas escolas com programas adequados, muitas bibliotecas, muitos hospitais ou serviços de saúde com pessoal vocacionado e acima de tudo que o funcionalismo público tenha valores morais e éticos. Só assim a sociedade se poderá desenvolver de forma harmoniosa e em paz[5].
São variadas as insuficiências que a Administração Pública apresenta em Angola. Mas tal não pode justificar tudo. A Administração Pública tem a responsabilidade de actuar na satisfação das necessidades vitais da sociedade através dos órgãos por si criados para a prossecução de fins públicos. São necessárias reformas urgentes que não fiquem pelas intenções compartimentadas ou sectorizadas, mas sim sejam globais e actuantes e que passem pela mudança de atitude do cidadão. Tal implica, nomeadamente, a definição do perfil dos dirigentes e quadros da Administração Pública, ajustando a sua remuneração ao seu desempenho profissional. Para o cumprimento deste propósito, impõe-se a tomada de medidas jurídico-administrativas no âmbito de reformas adequadas ao desenvolvimento do país e ao crescente aumento das exigências dos cidadãos em prol da qualidade e eficiência da Administração Pública.
Em termos de sectores prioritários, existe em Angola alguma legislação avulsa, porém já bastante para reformar a Administração Pública ou, pelo menos, para melhorar o seu desempenho. O esforço desenvolvido a nível do MAPESS[6] é porém insuficiente porque, em boa verdade, a reforma deverá ser um processo que envolva todas as instituições públicas e obtenha resultados palpáveis.
Para melhorar os serviços públicos em Angola é preciso a privatização de alguns desses serviços. Os serviços públicos hoje prestados pela Administração Pública ainda não são satisfatórios para o cidadão, quiçá por ausência de competitividade dos serviços prestados. Além disso, por razões estruturais, a Administração Pública não tem condições para continuar a abarcar todos serviços públicos do seu exclusivo domínio. Por esta e outras razões, justifica-se que o Estado angolano privatize alguns serviços públicos, como serviços de limpeza nas cidades, saneamento básico, energia, do domínio do Estado um vez que na maioria dos casos apenas representam encargos financeiros. Com as suas privatizações o Estado, para além da melhoria dos serviços, obtém rendimentos fiscais da actividade privatizada. As políticas de privatização do Estado não devem prejudicar o interesse dos cidadãos. Por exemplo, a privatização de todos os serviços de saúde é extremamente perigosa porque se uns, muito poucos, poderão pagar seguros elevados de saúde, outros haverá, uma grande maioria, que a pouco mais poderão ter direito que a uma consulta rápida e depois vão morrer para casa sem direito a tratamento. Algumas actividades poderão eventualmente ser privatizadas, como a recolha e tratamento do lixo. Em termos práticos, isto implica a abertura de serviços privados que se vão especializar e criar emprego. Mas mais uma vez é preciso ter cuidado com o problema da corrupção e não proceder à adjudicação de trabalhos sem concursos públicos e a coberto de práticas ilícitas. Do mesmo modo, importa acautelar a existência dum ensino público que rivalize em qualidade com o ensino privado, garante um serviço de qualidade às crianças e jovens dos vários grupos sociais.
Apostar nos recursos humanos disponíveis e no uso das tecnologias significa uma melhoria da qualidade da prestação dos serviços públicos, permitindo satisfazer mais rapidamente as necessidades colectivas dos cidadãos. O recurso às novas tecnologias de informação e comunicação na Administração Pública, particularmente na gestão dos serviços públicos, contribui para a eliminação das rotinas administrativas desnecessárias praticadas pelos funcionários e agentes administrativos e também muito comum em Angola, bem como para a eliminação da prática da famosa “gasosa[7]”. A introdução das TIC na Administração Pública pode contribuir para uma gestão transparente dos meios gastos à sua disposição e dos serviços prestados ao cidadão. Porque o óbvio é que na era da informática é preciso apostar nas novas tecnologias para modernizar o sector público desde que seja dada formação adequada e que os programas funcionem. De que serve um código de acesso à minha situação fiscal se levo horas ou dias para conseguir entrar no sistema? Não será mais rápido ir ao guichet, apesar das filas intermináveis[8]?
Por isso, Burke afirma que uma reforma não se faz para criar um Estado novo mas sim para conservar. Só é possível reformar quando há imitação. A reforma, diz ainda Burke, é um processo que, depois de identificar a parte que lhe falta, se limita a reformar tal parte (Burke, 1967). E Rodrigues acrescenta que a boa reforma administrativa está ligada à ideia de um Estado competente, à boa governabilidade e esta exige, entre outros, os seguintes requisitos: a) uma economia de mercado regulada e que, de forma justa e equitativa, contribua para o bem-comum; b) uma aturada visão estratégica que determine as missões, os grandes objectivos e as políticas públicas ajustadas às necessidades sociais; c) uma descentralização e desconcentração graduais e ajustadas aos interesses das populações e dentro de regras de economia de meios; d) um exercício eficaz da justiça; e) uma participação mais efectiva da população no desenvolvimento comunitário; f) uma atenção permanente aos gastos públicos e à relação destes com o benefício associado; g) capacidade de liderança dos dirigentes da Administração e comprometimento com os objectivos de desenvolvimento em desfavor da ordem burocrática, tida muitas das vezes como um fim em si próprio; h) co-responsabilização entre Estado, sociedade civil e sector privado no alcance da eficiência e eficácia do desenvolvimento; i) transparência no processo da decisão administrativa; j) identificação das necessidades sociais (por métodos científicos) (Rodrigues, 2000).
Quanto ao mau aproveitamento dos Recursos Humanos, Martins salienta que as regras que regem a organização do pessoal de qualquer país que vise a modernização inserem-se em cinco categorias: o homem certo para o lugar certo; a optimização dos recursos; a busca da qualidade em vez da quantidade, a inovação e a criatividade e; a produtividade (Martins, 2007).

Sempre a considerar,
Mestre Benvindo Luciano
Sociólogo e Docente Universitário



[1] Conferência proferida no Porto em 30 de Maio e organizado pelo Sindicato dos Trabalhadores da Função Pública (2001b).
[2] Consultar também obre esta matéria em Isabel Corte-Real (1995), Al Gore (1994) entre outros.
[3] Um breve reparo do o relatório de Al Gore sobre o estado da Administração Pública americana e as opções para a sua reforma.
[4] Ver também em Catalã, (2005).
[5] Uma abordagem feita não de pesquisa de campos como também de conversa com pessoas que directa ou indirectamente seguem o processo administrativo angolano.
[6] MAPESS – Ministério de Administração Pública e Emprego e Segurança Social.
[7] Gasosa é o termo atribuído em Angola para aquelas práticas menos lícitas ou seja o dinheiro sujo.
[8] Inquietações levantadas pela Dra. Adelaide Abrantes, que não fogem tanto da realidade angolana.

2 comentários:

  1. Conteúdo a considerar na gestão das crises e desempenho das organizações publicas.
    Bem haja DR. BV.

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  2. Muito bom, Mestre Benvindo! A presente matéria é de suma importância para todos nós e ajuda-nos a percebemos sobre a a questão da reforma administrativa do Estado. Parabéns e sucessos.

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