sábado, 10 de janeiro de 2015

GOVERNANÇA, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA EM ANGOLA

A governança pode ser definida como um modo de governação que permite ao mercado operar e viabilizar a participação activa dos cidadãos nas tomadas de decisão (Gomes, 2003). A governança supõe, em última análise, um governo mais atento aos limites da sua esfera de acção e que saiba trabalhar com eficácia no âmbito dos parâmetros estabelecidos.
A governança comporta os requisitos institucionais para a optimização do desempenho administrativo, isto é, o conjunto de instrumentos técnicos de gestão que assegure a eficiência e a democratização das políticas públicas. Segundo Diniz, citado por Gonçalves da Silva, o termo envolve a capacidade da acção estatal na implementação de políticas para a consecução de metas colectivas. Refere-se ao conjunto de mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensão participativa e plural da sociedade, o que implica expandir e aperfeiçoar os meios de interlocução e de administração do jogo de interesses. A partir desta definição, pode aferir-se a qualidade da governança. Entende-se como boa governança o conjunto de acções por parte do governo que assegure a eficiência e a democratização das políticas públicas. Já a falha do governo em administrar os seus instrumentos técnicos de gestão para o bem dos seus governos é denominada má governança[1]. O termo governança leva-nos às condições de governabilidade/governo estável, ou seja, a capacidade de gerir de forma estável e eficaz a coisa pública. O modelo de governabilidade supõe a descentralização e desconcentração na administração pública, aplicação de modelos gestionários e a desburocratização. De acordo com Catalã, citado por Martínez, a governabilidade refere-se à capacidade de uma determinada sociedade em enfrentar positivamente os desafios e as oportunidades que se apresentam num momento determinado. O sistema é governável quando está estruturado sociopoliticamente de modo tal que todos os actores estratégicos se interrelacionam e resolvem os seus conflitos segundo um sistema de regras e de procedimentos formais ou informais – instituições – dentro do qual formulam as suas expectativas e estratégias (Martínez, 2005).
Martínez diz-nos que a governança implica, pois, uma forma nova e diferente de governar, caracterizada pela interacção entre uma pluralidade de actores, as relações horizontais (governante e o cidadão), a busca de equilíbrio entre o poder público e a sociedade civil e a participação do governo e da sociedade em geral, e de um único actor, seja este político, económico, social ou cultural. Esta mesma governança obedece aos princípios de participação, transparência, prestação de contas ou accountability, eficácia e coerência.
A avaliação da governança passa necessariamente pela implementação das políticas públicas – as acções que o governo realiza com o objectivo de atingir os caminhos estabelecidos e que serão efectuadas pela Administração Pública. As políticas públicas são implementadas para todos e devem surgir da união da sociedade civil organizada, partidos e governo, que traçam juntos os destinos da nação; passa também pela participação activa do indivíduo nos assuntos do Estado (cidadania). Tal é o verdadeiro sentido da democracia. Esta mesma participação é exercida pelo voto nas eleições e nas tomadas de decisão acerca dos temas de interesse público, como por exemplo ao participar na selecção das políticas públicas.
No plano africano, os problemas do subdesenvolvimento humano, crescimento económico disperso, corrupção, abuso do poder, as falhas no funcionamento dos sistemas administrativos, tais como a saúde, educação, habitação, serviço comunitário/social, explicam-se por causa da não consolidação política dos Estados (muitos países ainda vivem no rescaldo de conflitos étnicos e religiosos) e pela não aplicação de adequados modelos técnicos de gestão pública. Isto pode-se traduzir na ausência de boa governança. Segundo Gomes, podemos dizer, em síntese, que o risco para a governança resulta, por um lado, das falhas na articulação entre o plano da representação política e o plano das negociações sectoriais e, por outro lado, das tensões crescentes entre a lógica pura e dura da economia de mercado e uma lógica de radicalidade democrática (Gomes, 2003).
A ideia de governança numa Angola pós independência é muito recente visto que o país viveu muitos anos de guerra civil (antes e depois de 1992, com as eleições presidenciais de Setembro desse mesmo ano). A estrutura do Estado encontrava pouco campo de acção para estabelecer os seus fins, e os cidadãos não participavam activamente nas tomadas de decisão política. Com o Acordo de Paz assinado a 4 de Abril de 2002 e as eleições legislativas de 5 de Setembro de 2008 (dezasseis anos depois), fruto duma democracia em amadurecimento, o Estado tem procurado ser eficiente e transparente na implementação das políticas públicas. De igual modo, procurou criar as condições para os cidadãos exercerem os seus direitos e deveres, por meio de votos, esperando assim a sua participação mais activa.
Será saudável que um país como Angola, que se encontra em fase de reconstrução, aproveite as vantagens da governança para o bem da população do país e dos países que estão à sua volta. Rosembaum, citado por Gomes, refere as vantagens que a governança parece apresentar, desde que não conduza à criação duma espécie de “muro de Berlim” entre os diferentes níveis de administração. Em tese, a governança permite reforçar o sistema de checks and balances do Estado de direito; leva à criação dum espaço suplementar de participação cívica e à emergência de instituições da sociedade civil; oferece novas oportunidades e recursos para a intervenção de partidos políticos de oposição ao governo; cria espaços de aprendizagem para o desenvolvimento de competências e práticas democráticas; dá mais opções aos cidadãos quanto à prestação pelos serviços públicos do que lhes é solicitado; permite combinar uma certa uniformidade com a necessidade de fazer adaptações locais e, assim, estar mais em consonância com os interesses das populações; confere um maior sentimento de eficácia política ao conjunto dos cidadãos, que tendem a reagir mais positivamente a um governo que lhes está próximo; enfim, oferece melhores possibilidades às iniciativas económicas locais (Gomes, 2003).
Sabemos que, em termos gerais, as políticas púbicas são orientações e directrizes que a Administração Pública deve seguir para atingir o bem comum, tendo por objecto assuntos de interesse geral. Neste contexto, o governo é o órgão máximo e a administração apresenta uma conduta hierarquizada como meio para atingir os objectivos traçados pelo governo. Dornelas frisa que as políticas públicas têm como função manifesta a afectação de recursos – com ou sem relação com as disfuncionalidades de mercado; a redistribuição de benefícios, políticas activas, assistência, dispositivos de promoção, estabilização e regulação de actividade económica e integração social. E, como função latente, imposição de limites à desorganização social, produção de normas de referência, aprendizagem institucional, reformas da arquitectura institucional do Estado e legitimação das instituições (confiança, diminuição de tensão, etc.)[2]. Cabe ao Estado realizar várias actividades em prol da colectividade, devendo para tanto traçar um planeamento estratégico, elegendo prioridades e metas governamentais, bem como a escolha dos meios adequados para a consecução do bem comum, visto que, segundo Chevallier, o Estado não é só uma organização territorial mas a expressão da vontade colectiva da nação (Chevallier, 1999).
Um exemplo concreto das actividades colectivas do Estado é o do Estado-Providência e as suas sucessivas reformas. Mozzicafreddo refere que a reforma do modelo de funcionamento do Estado-Providência, nomeadamente nos mecanismos de concertação social, deveria assentar em princípios básicos de regulação da sociedade, tais como a existência de um compromisso social e económico assumido e interiorizado entre os parceiros sociais e o sistema político no seu conjunto, não apenas do impasse em que se encontra o país, mas também no sentido de alterar as políticas casuísticas – de compensações sociais e financeiras e de soluções parcelares e imediatas – por uma acção reguladora e estruturadora das actividades económicas e sociais. A reforma social não pode negligenciar a necessidade de introduzir princípios de selectividade nos sistemas de protecção social, de contenção dos gastos públicos e de racionalização da administração pública, por forma a estabelecer um sistema com maior equidade social – com maior incidência nos necessitados – e menores gastos corporativos e de dependência assistencial. A reforma social não pode também introduzir sistemas de sistemas que gerem uma desigualdade de oportunidades de forma a criar uma igualdade de acesso aos sistemas de protecção social pelos segmentos sociais mais desfavorecidos. Esta reforma deve procurar garantir uma participação alargada no funcionamento da concertação social. Estes são processos que induzem comportamentos e, neste caso, de reconhecer que depende do sistema político, face à necessidade de compatibilizar a médio e longo prazo o compromisso entre padrão económico competitivo e coesão social, o desenvolver políticas de centralização organizadora que devolva ao político, no contexto dos diversos poderes sociais e económicos, o papel de regulação estratégica da sociedade (Mozzicafreddo, 2001).
Como prioridades nas políticas públicas em Angola, o Estado aposta (deve apostar) no apoio social aos mais desfavorecidos, com a criação de infra-estruturas tais como hospitais suficientes, creches, lares para a terceira idade, escolas, etc, assim como na formação de quadros, a modernização dos serviços públicos[3]e a melhoria da estrutura e funcionamento da Administração Pública.
A cidadania é a participação do indivíduo nos assuntos do Estado. Para Aristóteles a cidadania era o status privilegiado do grupo da cidade-Estado. No Estado democrático moderno, a base da cidadania é a capacidade para participar no exercício do poder político por meio do processo eleitoral. Assim, a participação dos cidadãos no moderno Estado-nação implica a condição de membro de uma comunidade política baseada no sufrágio universal, e portanto também a condição de membro de uma comunidade civil baseada na letra lei. Enquanto para Aristóteles, o status cidadania estava limitado aos autênticos participantes nas deliberações e no exercício do poder, presentemente a cidadania nacional estende-se a toda sociedade[4]. Para além da questão dos direitos e deveres, a ideia de cidadania como exercício de participação nas tomadas de decisão política está ligada às classes sociais, com o seu fluxo de igualdade e desigualdade social. Segundo Barbalet, os aspectos da desigualdade social são afectados pelo alargamento do âmbito da cidadania (Barbalet, 1989)[5].
Barbalet acrescenta que existem três elementos de cidadania: o civil, o político e o social. O elemento civil é composto pelos direitos necessários à liberdade, e a instituição que lhe está associada mais directamente é o sistema judicial fundado na lei. O elemento político consiste no direito de participar no exercício do poder político. E finalmente o elemento social é constituído pelo direito ao nível de vida predominante e ao património social da sociedade[6]. Sampaio Marinho afirma que cada cidadão tem determinado direito e as respectivas obrigações para com o Estado a que pertence. Quanto aos direitos sociais, João Carlos Espada define-os como pretensões, e não só liberdades, já que deveriam implicar a obrigação por parte de terceiros de assegurarem um tipo qualquer de bens a que se considera que o seu titular tem direito. Como a obrigação que decorre desses direitos não é uma obrigação negativa, mas sim uma obrigação positiva de agir, nomeadamente a obrigação de assegurar bens e serviços (ou o acesso a bens e serviços), os direitos sociais têm de ser direitos positivos. E, por último, como não acarretam obrigações para indivíduos específicos, exigindo, em princípio, acção, ou a contribuição para uma acção, por parte de todas as outras pessoas em relação ao titular do direito, os direitos sociais são supostamente in rem (Espada, 2004). Espada distingue os direitos in personam dos direitos in rem da seguinte maneira: os primeiros acarretam obrigações específicas por parte de determinados indivíduos, como no caso do direito de um credor contra o seu devedor. Pelo contrário, os direitos in rem envolvem obrigações por parte de todas as outras pessoas, ou de “toda a gente”, para com o titular do direito. É o caso dos direitos de propriedade, de acordo com o qual todas as pessoas têm uma obrigação de tolerância ou não de interferência na propriedade alheia (Espada, 2004)[7].
Mozzicafreddo afirma que um dos elementos de limitação do exercício efectivo da cidadania se refere a algumas das características do funcionamento dos partidos políticos e do Parlamento[8] enquanto forma de representação dos cidadãos. Não se trata de pôr em causa o seu papel positivo, mas apenas de observar alguns dos efeitos disfuncionais da sua acção enquanto canais privilegiados da representação dos cidadãos e de formação do espaço público (Mozzicafreddo, 1998)[9]. No caso angolano, por exemplo, com as eleições legislativas de 2008 foi constituído o novo Parlamento com 191 deputados do MPLA, 16 deputados da UNITA, 8 deputados do PRS – Partido Renovador Social, 3 deputados da FNLA e 2 deputados da ND – Nova Democracia. Estes partidos políticos e os seus respectivos deputados foram nomeados como representantes e aqueles que respondem pelos cidadãos no Parlamento. Tanto os partidos políticos como a sociedade civil têm o direito de influenciar o processo de decisão das políticas públicas e contribuir para o bom funcionamento da governança.
Por isso, o actual estado de governação angolano é aceitável comparativamente ao passado mas a plena concretização do Estado de direito requer medidas em múltiplos domínios, quer no plano estritamente político, quer no plano cultural. O desenvolvimento estratégico do país é definido pelo Livro Branco (com um horizonte de 20 anos), bem como pela Agenda Nacional de Consenso (a exemplo do Pacto de Estabilidade de Portugal). Esta Agenda Nacional de Consenso tem procurado transformar a economia dos recursos irrenováveis para os recursos renováveis. Por exemplo, os recursos que vêm do petróleo têm sido colocados ao serviço da industrialização do país, das infra-estruturas, da agricultura, da pesca, da habitação, entre outros aspectos. A abertura de muitos bancos privados, a livre circulação nas dezoito províncias do país, o regular funcionamento de empresas de recolha de lixos (Ambitec, Sanágua, por exemplo), são também dados importantes. Isto reflecte-se naquilo que Feijó e Paca chamam de princípio de participação na gestão da administração, uma das mais importantes conquistas dos Estados modernos no âmbito da actividade pública administrativa e a correlativa relação com os administrados. Manifesta-se através do poder reconhecido aos particulares de participarem, de diversos modos, no exercício da actividade administrativa (arts. 8º, 27º e 52º do Decreto-Lei 16-A/95, de 15 de Dezembro). O nº1 todo o cidadão tem o direito de participar na vida pública e na direcção dos assuntos públicos, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos, e de ser informado sobre os actos do Estado e a gestão dos assuntos públicos, nos termos da Constituição e da lei, e o nº2 todo o cidadão tem o dever de cumprir e respeitar as leis e de obedecer às ordens das autoridades legítimas, dadas nos termos da Constituição e da lei e no respeito pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais, do artigo 52º da Constituição. Este princípio fundamental do cidadão, constitucionalmente previsto, significa que os cidadãos, para lá dos mecanismos da democracia representativa, podem participar nas tomadas de decisão intervindo directamente no funcionamento quotidiano da administração (Lei Constitucional, arts. 3º/2, 10º, 28º, 30º, 50º e 90º, al. k) e Decreto-Lei 16-A/95, nos arts. 8º e 27º) (Feijó e Paca, 2005).

Sempre a considerar,
Mestre Benvindo Luciano
Sociólogo e Docente Universitário



[1] file://M:CV-Jean Manuel Gonçalves da Silva Actividades Académicas – Academic Activities “extraído no dia 26/09/08”.

[2] Acetatos da disciplina de Políticas Públicas, dentro do programa da disciplina de Estado, Administração e Políticas Públicas, ISCTE, ano lectivo 2007/08; Muller, Pierre (1990) e Muller, Pierre (1995).
[3] Numa acepção jurídica, serviços públicos: são estruturas administrativas criadas com a finalidade de preparar e executar as decisões dos órgãos da pessoa colectiva pública a que pertencem Dr. Carlos Feijó, Carlos e Cremildo Dr. Cremildo Paca (2005).
[4] Barbalet, J. M. (1989).
[5] Ver detalhadamente em Stanislaw Ossowski (1963).
[6] Abordagens feitas a partir de T. H. Marshall (1950).
[7] Espada refere também que os direitos sociais foram introduzidos como parte dos direitos do homem, que se tornaram geralmente conhecidos depois de a Declaração Universal dos Direitos do Homem ter sido adoptada pela Organização das Nações Unidas em 1946. Esta Declaração pode ser consultada in UNESCO (1948).
[8] Designando-se como a fábrica de Leis – Parlamento.
[9] Mozzicafreddo referia-se na questão do poder do cidadão e poder da estrutura institucional, mais concretamente em Portugal no que tange a modernidade! O que pode também ajudar para uma Angola que percorre o caminho para a modernidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário